28 abril 2013

Faltando um pedaço.


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Tarde de domingo. Abril de 2013. Você, alun@ regularmente matriculad@ no curso de Diplomática, deve estar perguntando: como um post cai assim do céu? Ou talvez, numa palavra mais apropriada ao discurso tecnológico, das nuvens? Mais um desafio? Não. Fiquem tranquilos. Só uma reflexão que quero compartilhar.

Para começo de conversa, cabe primeiro as honras de uma breve apresentação. Meu nome é Rodrigo Ávila. Ex-discente da UnB. Atualmente tenho a oportunidade de exercer a função de docência na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Esse desafio me fez alcançar a seguinte consideração: quando passamos "para o outro lado" (a luz não! não vá pra luz!), procuramos as melhores metodologias de aprendizagem. Ou seja, reencontramos nossas referências. Quando pisamos em sala, pensamos: "Por onde começar? Meus ex-professores, claro!". E essa disciplina sempre foi um marco na minha trajetória. Foi nela que consegui realmente compreender a diferença entre ensino e aprendizagem. Tanto que, mesmo após graduado, comecei a frequentar os encontros nas noites de sexta-feira. A primeira aula logo me pescou. "Como assim, o professor não diz nada e eu saio daqui pensando uma série de coisas sobre diplomática?". Voltei no ônibus pensando. Nessa aula específica, André encheu uma mesa de objetos. Ficamos investigando o porquê deles estarem ali. Tudo bem. Vamos agora ao que me faz retornar.

Na semana passada, um pedaço do trem de pouso, provavelmente do avião do "atentado" de 11 de setembro, foi encontrado nos Estados Unidos. (ACESSE). Fiquei pensando: por que esse pedaço de avião não pode ser um Lego gigante que meu sobrinho Joãzinho (que mora na Samambaia) deixou entre a mesquita e um dos prédios do WTC? Será que alguém não deixou esse pedaço por engano? Ou até mesmo com a intenção de chamar atenção das autoridades? Vamos ao que interessa. Chegou a hora da Diplomática.

Já que você teve a paciência de me acompanhar nessa loucura, apresentarei insanidades maiores. Vamos a um pouquinho de lógica. O pedaço do avião está para o avião inteiro, concorda comigo? Isso porque os peritos tentarão remontar o quebra-cabeça do avião. Assim como o avião inteiro está para alguma coisa, também concorda comigo? Em outras palavras, o avião pode ser qualquer avião. Mas parece que não: inclui o número visível da identificação de um Boeing. Voltando o raciocínio: o pedação está para o todo. O todo está para alguma coisa: Céu, nuvem, chuva, WTC? Preencha a lacuna você.

O método diplomático e tipológico nos leva exatamente a estas questões. É uma tentativa de dar significado ao "estranho" elemento por intermédio da análise de seu contexto de origem. Vai do micro para o macro. Despedaça para depois juntar. Mastiga para vomitar. É como começar a ler. Paulo Freire que me desculpe, vou matar aqui suas intenções políticas de alfabetização. A letra resulta na sílaba. "Ra". Uma sílaba a outra. "Ra-Re-Ri-Ro-Ru". A junção à palavra. "Ra-to". A palavra ao significado: bichinho "nojento" que come restos de comida ou então cobaia de laboratório para testes científicos. O significado ao contexto: "o rato roeu a roupa do rei de Roma". E assim se aprende a ler, a contextualizar, a problematizar temas e questões.

"Ok Rodrigo, você está falando de Boeing, meu filho. Nós discutimos documentos de arquivo". É sempre bom lembrar que o "achado" gerou uma boa quantidade de fotos. Além disso, a brincadeira aqui tem como objetivo aguçar a nossa curiosidade e discutir a Diplomática  de forma lúdica. Não pensem que vou deixar as coisas claras. A ideia é confundir para esclarecer.

Será que vocês realmente já pararam para pensar o que realmente o contexto significa num mundo que tem como prioridades majoritárias o acesso e o fluxo? A excelente discussão do post da Nota Fiscal de aluguel de espaço físico me fez pensar em questões profundas. Perdi o sono. André, ponto para você. O comentário de Mariana Sande revela pontos interessantíssimos: 

"(...) como o plano de classificação do Conarq é por assunto e não se importa (podemos dizer assim) com a função do documento, o sensato a fazer, visando a possível recuperação da informação é classificá-lo pelo assunto que representa, mesmo que não tenha dado a concretização de uma despesa, através do pagamento. Por isso, mesmo sabendo que não é adequado e que está longe do ideal, o documento deve ser classificado no código 052.22 por causa do seu assunto" (1).

Em outras palavras, Mariana, sabiamente, sobrepõe a questão do acesso ao contexto. Ou seja: para que serve a classificação? Acesso ou contexto? Ou acesso com contexto? No caso de sua classificação:  acesso sem contexto? Com propriedade, ela se defende previamente. Este é o ponto onde queria chegar. 

Será que a defesa do contexto é preponderante aos gestores de informações arquivísticas num mundo que só debate acesso? As organizações querem encontrar informações para tomar decisões. O acesso tomou conta do cenário. Jogou um desafio enorme às demais funções. Vide exemplo da preservação. Antes se pensava em preservar para dar acesso. Agora não, pensa-se em dar acesso e depois perguntamos: mas como vou preservar isso? As tecnologias da informação e comunicação (TIC) trazem esse desafio aos arquivistas. 

Imagine-se numa discussão com alguém da TI, juntamente com seu chefe. O cara da TI prometendo mundos e fundos (Sem trocadilhos). E você falando de contexto de produção, que está para a pesquisa, para a confiança da fonte. O mundo contemporâneo quer mesmo confiabilidade em meio às notícias instantâneas e inescrupulosas? Será que essa preocupação excessiva com o contexto não remete à visão historicista dos arquivos? Será que para defender a gestão temos que reforçar a vocação tradicional dos arquivos como "lugar de memória"? Schellenberg que me desculpe: quando o li, vi alguém tentando defender a gestão para reforçar a história. Daí a discussão sobre os valores primário e secundário. O pano de fundo é a avaliação. Mas o meu chefe não quer saber de história! Quer o agora. Vivemos num "mundo-espetáculo". (ACESSE) Recentemente, o Estadão publicou uma foto da Guerra do Congo para discutir a falta de merendas nas escolas de São Paulo. (Acesse aqui), E dai? Quem se importou? Contexto? "Para que meu filho?" O meu chefe bate em meu ombro e complementa: "Queremos notícias, e não fatos. Espetáculos prescindíveis de autenticidade". Enquanto isso, Luciana Duranti queima as pestanas no projeto InterPARES. (ACESSE).

Sabe o que é mais interessante nisso tudo? Talvez todos esses elementos contemporâneos reforcem ainda mais a importância da contextualização. Agora a minha cabeça começa a dor um nó. É assim mesmo. "A vida, portanto, meu caro, não tem solução". (ACESSE). Eduardo, um colega da UEPB, frequentemente diz "não consigo explicar aos meus colegas da TI a importância de um plano de classificação. Todas as perguntas que faço são respondidas com soluções facilmente transportáveis para os recursos  da tecnologia". Do tipo: "Ok Eduardo. Isso a gente resolve assim". Acesso, acesso, acesso....

Como a palavra de ordem é colaboração. Alguém tem alguma opinião sobre o assunto? Vamos conversar sobre isso? O que vocês acham? Gostei muito das discussões da turma nos posts anteriores.

(1) O que interessa em nossa discussão não é se a classificação está certa ou errada. O relevante é a justificativa da autora. A funcionalidade da classificação como representação do contexto e/ou acesso.

P.S: André, tomei um pouco do "não-espaço". Mas a ideia é essa.

Abraços.
Rodrigo Ávila


EM TEMPO: o "ñao-espaço" está às ordens; use & abuse. Acho que os alunos e todo nosso público externo (afinal 42,5% das 7.224 visualizações de páginas dos últimos 30 dias é de fora de Brasília) só têm a agradecer por suas intervenções, que estimulam e fomentam o debate. - André Lopez

7 comentários:

  1. Na TI, a classificação parte do criador de conteúdo. Eles criam o lápis e o papel, quem escreve é você. Eles até resolvem os problemas relacionados ao uso do lápis, mas não se voltam para o que você escreveu. Dessa maneira, tudo o que estudamos em arquivologia relativo a análise documentária passa despercebido.

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  2. Eduardo, mas a recuperação da informação não requer observar o que o lápis que estava em sua mão escreveu? Ou você está destacando a Folksonomia(sistema de classificação colaborativo)? Você cria e também classifica, é isso? Talvez pensando no "agora" os preceitos passem despercebidos. Não sei se para o "amanhã" o "sistema" se sustenta sozinho. Como foi dito: talvez a efemeridade destaque ainda mais a importância de um solo firme para "assentar" as informações.

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  3. Acho que o motor está para o avião assim como o avião está para o motor. Um não funciona sem o outro, o todo completo. È uma coisa de visão sistemica do arquivo. Não adianta classificar, preservar, descrever se não tem acesso. Se não tem acesso, pra que eu vou preservar, classificar ou mesmo organizar a porcaria todo. Pra cada questão de TI existe uma resposta simples, mas não se propõe uma resposta pra todas ao mesmo tempo. É um motor sozinho que pode ou não ser da meleca do boing ou ser de um teco-teco qualquer. A análise diplomática dele é quem vai dizer se ele estava mesmo no boing ou no teco-teco (e por analise diplomática eu digo, o número de série, as caracteristicas do motor, o tamanho, o estado de conservação já que ele se despedaçou e passou um tempo sob as intempéries, etc..) contextualizar é que vai dizer se ele é o que se pensa ser. Um sistema só funciona dentro de um determinado contexto, dentro das suas interações. Esse mundo doidão de informações aqui e agora precisa ser adaptado pelo arquivo assim como quem quer informação de qualidade precisa se adaptar às fontes de pesquisa que sejam mais do que um google em papel ou pdf.

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  4. Daniella,
    eu acho ótimo esse raciocínio. Algo realmente precisa me dizer que o pedaço do boeing é realmente "daquele" boeing do atentado, ou simplesmente que é um pedaço de um avião qualquer. Mas realmente era do Boeing (http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/04/1270785-boeing-confirma-que-peca-achada-em-manhattan-e-de-avioes-do-119.shtml). Os peritos erraram na análise "diplomática" inicial: a peça é uma parte da asa. Olha o que a notícia traz "(...) Até o momento, todos os fragmentos recuperados foram tratados como peças históricas e entregues a museus".
    Duranti diria que o registro deve ter propriedade para "dizer o que ele diz ser". Eu não posso fazer simplesmente com que ele seja o que eu quiser. Ele "me diz" coisas. Mas a questão desse "mundo doidão" (rs) é que o uso está dizendo o que é a informação. O caminho não está sendo de dentro para fora, mas de fora para dentro. É como se aquela coisa dissesse "x", mas eu quero usá-la para "y". Ninguém vê que agora não posso dizer que o pedaço do avião é um Lego gigante? Assim, apego-me à funcionalidade da prova. Mas e se o meu sobrinho João só quer brincar de aviãozinho? Ele não quer saber de provar nada. Nesse caso ele serve do mesmo jeito. Em suma, é como se eu perguntasse previamente: para que vc quer a informação? O problema talvez seja que há um vínculo direto entre "qualidade" e prova, evidência. Preciso garantir uma diferenciação no emaranhado de informações (agregar valor). Algumas precisam se destacar mais que outras. Elas não podem ser vistas de forma homogênea. O problema é: não sei como estruturar isso se não sei para que as pessoas querem. O nó é: quando se pensa em acesso, tocamos o usuário. E essencialmente os arquivos não foram constituídos para usuário, e sim para o poder, administração, Estado. Como a gente vê falar: espelhos da organização. Mas os usuários podem me solicitar de qualquer forma a informação e o uso dela é "inatingível". Talvez esse seja o grande dilema dos arquivos na contemporaneidade. Também acho que não tem funcionalidade nenhuma se não houver acesso e uso. Mas... parece que a realidade não é bem essa.

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  5. Mas e esse usuário, ele não é um membro do poder, da administração, do estado? A gente tem a tendencia de separar uma coisa da outra, achar que o sujeito que vai ao arquivo procurar alguma coisa é o "usuário" como se ele não fosse a representação personificada da organização, do poder, do estado. O sujeito não precisa ser a propria presidente pra ir lá e pedir alguma coisa no sua atribuição. Nós temos tirado do usuário seu poder final, que é o de representar a instituição em si. E quem disse que o pedaço do boing não pode ir direto pro museu? Não seria um pedaço destruído do avião um objeto de memória já que a história dele já foi contada e recontada? Virou um bem cultural, uma escultura mórbida pra lembrar de um evento que é histórico no país. Um pedaço de avião que traz atenção mundial. Ele já tem atribuído, do momento de sua descoberta, a lembrança de uma coisa devastadora. Será que é mesmo de fora pra dentro? Porque aquele pedaço específico de avião como peça do lego já é inservível, não vai mais voar feliz pelos ares depois de ter se estraçalhado em um prédio. Não serve mais pra reconstituir os acontecimentos, que já foram martelados até o limite do possível. Não é lixo, porque foi parte de uma tragédia. Serve, então, como peça de museu que é ou será. E se o Joãozinho quer brincar de aviãozinho, vai ter de se contentar com outro aviãozinho. De preferencia um inteiro e mais alegre do que este boing que por um acaso teve um destino mais triste do que seus coleguinhas que vão parar em algum cemitério de aviões que pararam de funcionar por motivos menos fúnebres.
    Queria eu que existissem laboratórios de arquivo. Aonde a gente pudesse isolar o arquivo em placas de petri e experimentar com eles em máquinas revolucionárias. Ao contrário disso, experimentamos no meio da realidade que nem sempre é o que queremos/desejamos.

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  6. Daniella, antes de responder, é bom agradecer pelos seus comentários que estão fazendo uma bela reflexão.

    Primeiro ponto, apenas para dirimir alguns equívocos: em nenhum momento critiquei a decisão de mandar o pedaço do avião para o museu. Apenas recortei a informação. Descontextualizei o pedaço e viu no que deu? rs.

    Segundo ponto, o "de fora para dentro" foi no sentido de que as informações estão sendo utilizadas sem levar em conta o contexto. O uso está orientando a "natureza" das informações. Talvez eu não tenha me expressado direito nestes pontos.

    Em terceiro lugar, realmente não acredito que o usuário seja um elemento considerado na estrutura de um arquivo. Ele deveria ser, mas não é. E nem tudo que parece é. Talvez o poder o represente em seus silêncios e não em suas falas. Apenas como sinônimo de exemplo, as centenas de comunidades quilombolas que existiam em Brasília antes de Juscelino "povoar o interior do país" não estão representadas nas "instituições de memória" (de quem?). O samba de roda da Bahia, vindo diretamente dos escravos, agora começa a ser registrado, devido ao seu posto de patrimônio da humanidade. Há uma intensificação de representatividades alternativas que não estavam alocadas dentro da estrutura informacional do poder. Gilberto Gil que o diga. Seu ministério fez um enorme esforço para intensificar os pontos de cultura, como uma maneira de ressaltar as identidades locais, aquelas que não tem as suas "memórias" dentro dos espaços de cultura tradicionais.

    Já existem vários trabalhos que questionam: quem os arquivos representam? Parece que temos o dilema e a responsabilidade de reconstituição dessa representação "mais representativa" (trocadilho infeliz.rs). A classificação e avaliação das informações são realizadas sob um ponto de vista institucional. Tanto que a corrente da macro-avaliação canadense levanta exatamente esse ponto: como inserir o cidadão na seleção das informações?

    Acredito que existam grandes desafios para os gestores dos arquivos, advindos da mudança da estrutura da sociedade em termos de informação. Descentralização da produção e da seleção do que é relevante; o uso das tecnologias; a crise da mediação do acesso; a filosofia atual da instantaneidade, entre tantos outros. Tudo isso é fruto de uma "nova" questão social: a intensificação do acesso. Os nossos pressupostos ainda estão ancorados sob a custódia, e não pelo viés do fluxo. Infelizmente, parece que é agora que eu olho os conjuntos documentais e penso: "nossa, alguém vai usar isso!!". O pior é que esses pontos aqui discutidos não são nem levados em conta no mundo teórico da Arquivologia. Para muitos teóricos "arquivos não têm nada que ver com usuário". Por isso acho sempre bom discutir esses pontos. E agradeço a oportunidade que vc está me dando de reavaliar esses pontos de vista.

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  7. Ah... o Joãozinho vai ter que se contentar mesmo com outro avião. Ainda mais agora que esse pedaço é evidência de um fato histórico. rsrsrs

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